terça-feira, 17 de agosto de 2010

ALGUMAS QUESTÕES DE POESIA VI

Outro aspecto que o poema aponta para rica discussão é a mistura de poesia e prosa, como aparece na estrofe (“Em coro a turma toda rosna/contra a mistura de poesia e prosa”). Ora, pelo menos, desde a década de 20 a prosa se tornou poética e a poesia, prosaica, de modo mais intencional do que em estilos anteriores. E até o uso da fala no poema, como ocorre em Colóquio, já existia na primeira fase do Mo-dernismo. O contágio da poesia pela prosa e vice-versa tem sido enriquecedor para a literatura, no entanto, por razões didáticas, vale a pena estabelecermos algumas diferenças entre as duas formas, até para justificar os termos “prosa poética”, “poema em prosa” ou “poema prosaico”.
É claro que muitas obras, principalmente da segunda metade do século passado para cá, foram apresentadas como poemas, o que nos levaria a uma noção de texto, abolindo quaisquer diferenças entre poesia e prosa. Como não achamos que a distinção seja aprisionadora, defendemos o uso dos termos e o seu reconhecimento. Nas últimas três décadas, temos visto que poetas, com medo de escreverem na linha de uma tradição, preferiram escrever em prosa e chamá-la de poesia, para fazerem algo diferente. Neste caso, a única diferença entre poesia e prosa seria a utilização da palavra no espaço em branco, o que nos parece demasiado simplista. Primeiro, não vemos por que temer a tradição; segundo, porque cremos que há diferenças várias que podem caracterizar a poesia, distinguindo-a da prosa, seja um conto, um romance ou uma peça teatral.
Podemos analisar vários poemas de Manuel Bandeira para discutir a presença da prosa na poesia e as suas variações. Sugerimos Pneumo-tórax, Poema tirado de um notícia de jornal, Noturno da rua da Lapa e O desmemoriado de Vigário Geral. Seria bom aproveitarmos estes textos para vermos as diferenças entre um universo prosaico e a linguagem prosaica. Os temas do cotidiano passam a conquistar espaço na poesia pós-modernista e o linguajar de gírias e expressões populares também, mas isto não significa que ambos estejam sempre juntos.
Que tal depois propormos o seguinte exercício? Escolhem-se poemas dos anos 20 para cá a fim de serem reescritos linearmente, sem a disposição em versos. Se o texto puder ser lido como um mini-conto ou minicrônica, por que chamá-lo de poema? E, ainda, se qualificamos tal poema de prosaico é porque no fundo sabemos que certas características textuais identificam a prosa, diferençando-a do poema. Então por que fingirmos que poema e prosa são a “mesma” coisa?

                                                                               Marcus Vinicius Quiroga

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

ALGUMAS QUESTÕES DE POESIA V


Na sétima estrofe, o poeta diz que o poema “não deve exibir cenas de nexo”. Primeiro, a substituição da palavra sexo, como seria de se esperar na frase, pela rima nexo causa a surpresa do humor. Técnica de humor à parte, a questão da arte hermética e inacessível também foi um dos valores do século XX. E, em muitos casos, podemos dizer que, quanto mais sem nexo, mais valorizado é o texto, sendo a falta de sentido identificada como o poético, a literariedade.
Temos que ter cuidado para mostrar a diferença entre uma proposta surrealista, que valorizava o arbitrário e o inconsciente, e o uso desconexo de palavras com a pretensão de ser literário. O surrealismo foi, sem dúvida, o movimento do início do século que teve mais desdobramentos, ainda que no Brasil só Murilo Mendes tenha sido reconhecido como poeta surrealista a merecer atenção. Mas há, por exemplo, em São Paulo um grupo de poetas surrealistas que é infelizmente pouco conhecido,  por razões óbvias de falta de divulgação da poesia, e faz jus a nossa leitura. Isto só para mostrar que, muitas décadas depois, esta “vanguarda’’ do início do século XX ainda tem ressonâncias.
Estamos diante de uma questão delicada: como objetivamente podemos dizer que o poema não tem nexo ou que ele tem um nexo próprio, uma coerência literária, que não pode ser lida pela lógica externa? Talvez seja um bom momento para falarmos da linguagem metafórica ou de figuras de linguagem. Várias destas figuras podem ser exemplo da “falta” de sentido, porque, na verdade, estão criando outro sentido, usando formas, há muito já estudadas e estabelecidas.
Só para lembrar, tiremos algumas figuras de Colóquio: metáfora (“ Poesia é matéria de fino esmeril.”), antítese (“sabem falar vazio de boca cheia.”), símile (“é como pimenta em doce de castanha.”)...


Marcus Vinicius Quiroga 












segunda-feira, 9 de agosto de 2010

ALGUMAS QUESTÕES DE POESIA IV

O dístico seguinte “Mais de três linhas é grave heresia,/ pois há de ser breve a tal poesia.” diz respeito à decantada concisão poética. Aqui é bom lembrar que textos épicos, raros na literatura brasileira, são normalmente mais longos, porque são narrativos, apresentam uma história com personagens heroicos; já a poesia lírica, predominante em toda literatura, tende a ser mais condensada.
Cabe também fazer referência a uma característica do século XX, a da valorização de textos mais curtos e mais “enxutos”, em parte pela influência da linguagem jornalística na linguagem literária. E isto não ocorre só na poesia, mas também na prosa. A literatura dita retórica ou discursiva do século XIX para trás é muitas vezes mal vista e a capacidade de síntese da linguagem passa a ser uma categoria de valor. No Poema-Orelha, de Carlos Drummond de Andrade, os versos finais dizem: “a poesia mais rica/ é um sinal de menos”. Não é também por acaso que a tese de doutorado do autor do poema Colóquio sobre a obra de João Cabral de Melo Neto se chama A poesia do menos. É inegável, portanto, que a linguagem condensada, sintética, enxuta é um dos objetivos dos poetas posteriores ao Modernismo, em oposição à poesia excessivamente discursiva e tagarela.
Nas décadas de 50 e 60, com as chamadas vanguardas da época (o concretismo, o neoconcretismo, o poema processo, a poesia práxis) o ideal de texto breve passou a ser programático e obrigatório. O verso muitas vezes se resumiu a uma palavra, ou a sílabas, atingindo o silêncio (a ausência total de palavras) em algumas realizações poéticas do período.
A expressão “grave heresia” do poema, com seu sentido de censura irônica, nos faz pensar que certas vanguardas, com seu caráter autoritário e seu discurso excludente, estabeleceram que o poema deveria ser de fato feito com poucos versos ou mesmo com poucas palavras, não aceitando o que transgredisse esta norma. Já nos anos 70 houve uma poesia que, sem pretender fazer oposição aos princípios concretistas, mas por outras influências e razões, mostrou-se bastante discursiva para os padrões da época. E de lá para cá, ainda que a brevidade seja apreciada, os poemas voltaram a ter mais liberdade e mais variedade de tamanho. Lembremo-nos ainda de que a condensação da linguagem não corresponde apenas (ou exatamente) ao tamanho do texto, o que seria simplista.
Outro motivo para que os poemas tenham se encurtado no século passado deve-se à questão da relação do leitor com o tempo e isto ocorreu em todas as artes. O tempo de duração de filmes e peças teatrais tem, de um modo geral, diminuído ao longo das décadas. Isto não significa que não haja romances de 500 páginas ou mais sendo escritos e lidos. Mas é bom registrar a crescente preferência do leitor e do espectador por obras menores, devido à falta de tempo e de hábito. Ou seja, a relação do leitor com a linguagem e o tamanho do texto também se modificam por razões alheias à literatura.

Marcus Vinicius Quiroga





segunda-feira, 2 de agosto de 2010

ALGUMAS QUESTÕES DE POESIA III


Este talvez seja um bom momento para falarmos sobre a diversidade temática, não só falando dos chamados temas eternos e universais, como dos circunstancias e particulares. Podemos mostrar que, embora certos temas não sejam exclusivos de épocas ou estilos, de alguma forma os caracterizaram. Ou que o tratamento dado ao mesmo tema (por exemplo, a morte) serve para diferençar um poema barroco de outro romântico; ou para aproximar um poema árcade (a natureza, por exemplo) de outro modernista, de intenção ecológica.
No caso de Colóquio, o tema é a própria poesia, daí termos dito acima que se trata de um texto metalinguístico, pois o autor se vale da poesia para falar da poesia. Ainda que o século XX não tenha tirado patente da metalinguagem, ela é uma das características de todas as artes deste século. Isto não equivale a dizer que os artistas do século anterior sejam melhores do que os de outros séculos, mas que são mais interessados em discutir o próprio fazer criativo.
Na 5ª estrofe temos o dístico “Aquele jamais atingirá o paraíso./Seu verso contém a blasfêmia e o riso”. Ora, o humor não é uma característica típica ou exclusiva da poesia. Na verdade é mais fácil de ser encontrado na prosa, no romance picaresco, na sátira, nas crônicas; na poesia, temos também textos satíricos, mas a predominância é lírica. Entendemos aqui que o riso se opõe à seriedade, ou, como disse João Cabral em Antiode, “contra a poesia dita profunda’. A opinião que desqualifica o poema por buscar o riso parece, por simples inversão, valorizar o texto supostamente sério e/ou profundo. Trata-se de uma questão antiga fora da poesia. No teatro há a tendência em valorizar a tragédia ou o drama em detrimento da comédia e, mesmo nos dias atuais, é comum a associação da peça cômica a um teatro de pouca qualidade, voltado apenas para a bilheteria. Opiniões preconcebidas à parte, a desqualificação do riso é histórica.
Repetimos: neste verso parece-nos que a crítica se dirige à falta de seriedade e aí podemos ver subentendida uma concepção de poesia.Ou seja, poesia corresponde a um texto profundo só voltado para questões filosóficas e existenciais. Como exemplo, temos o autor do texto objeto: sua obra se marca pelo humor em suas diversas matizes e ao mesmo tempo pela seriedade de poemas como A Fernando Pessoa e pelo lirismo de poemas como Margem. Dizemos isto para mostrar que a poesia tanto pode servir ao texto filosófico quanto ao irônico, ao amoroso, ao político e que um poeta pode escrever textos diversos e de qualidade.
O humor requer técnica e apresenta variedade significativa de expressão, não podendo, portanto, ser desprezado. Na nossa literatura, por exemplo, temos Gregório de Matos, mais estudado por seus poemas líricos e religiosos do que por suas sátiras, como comprovam os livros didáticos. Seu “riso crítico”, ainda que mais abundante, cede lugar aos exemplos de poemas religiosos do Barroco e aos poemas de amor. Seria censura? Conveniência didática? Ou cópia viciada de outros livros?
Seja lá o que for, o que queremos dizer é que o riso, como aparece em uma fala deste poema, serve para diminuir o mérito do autor, que a ele só se dedica. E soa como uma espécie de censura e conselho: poetas devem escrever sobre temas sérios que são mais perenes.



 Marcus Viniciuis Quiroga

terça-feira, 27 de julho de 2010

ALGUMAS QUESTÕES DE POESIA II


II

Na 4ª estrofe, há o verso “Faz poesia, e o leitor entende!”. Esta fala debochada critica o escritor que estabelece uma comunicação imediata com o leitor, como se a literatura tivesse que ser necessariamente enigmática. Antes lembremo-nos de que no século XX, todas as artes, e não só a literatura, tiveram como categoria de valor a não compreensão imediata ou até mesmo a incompreensão, isto sem falarmos de arte barroca ou simbolista em séculos anteriores. Não há dúvida de que isto deu margem a axiomas como “Se eu não entendi, o texto é bom.”. Outra vez dizemos que a qualidade de uma obra não reside apenas na facilidade ou dificuldade de sua leitura, embora nós, escritores, leitores e críticos formados no século passado, temos a tendência a apreciar um texto que requer releituras, texto este que pode ter sido escrito em qualquer época.
Para o leitor médio (e muitas vezes para o leitor inexperiente) parece absurdo alguém escrever um texto para não ser compreendido ou para ser compreendido parcialmente ou aos poucos. Isto contraria uma lógica de mercado de uma sociedade que há muito já vive sob o signo da cultura de massa, afinal um texto difícil teoricamente não tem cliente, sendo, portanto, um desperdício de produção.
Neste momento, podemos abordar também a questão do repertório, e esclarecer que o entendimento de um texto depende do repertório do leitor e não só da elaboração mais ou menos hermética do autor. Quanto maior for o repertório do leitor, maior a probabilidade de compreensão. E em textos do século XX que se caracterizam pela intertextualidade (texto que mantém relação com outro texto) e pela paródia (texto crítico que tem outro texto como modelo) o repertório é fundamental. Como apreciar o poema Os sapos, de Manuel Bandeira, sem conhecer os poetas parnasianos? Ou como entender as paródias de Oswald de Andrade e de Murilo Mendes, sem conhecer o modelo original da Canção do Exílio, de Gonçalves Dias?
Este texto Colóquio, por ser metalinguístico, certamente dará mais prazer a escritores e estudiosos de literatura de um modo geral, pois identificam nele várias falas lidas e ouvidas com frequência. Aqui surge, então, outro ponto a ser discutido, o da identificação. Mais facilmente gostamos das obras com as quais nos identificamos. Sabemos com experiência que leitores jovens gostam de personagens jovens ou de livros escritos por jovens, que tenham uma linguagem mais “familiar”. Isto não quer dizer que não possam apreciar outro tipo de literatura.
Cremos que vale a pena chamar atenção para a identificação como fator de compreensão de valorização dos textos e mostrar que muitas vezes ela ocorre sem que tenhamos consciência, independente da idade do leitor. Um poema que fale em Deus agradará mais a um religioso do que a um ateu, por sua temática, não por sua qualidade. Ora, em um primeiro estágio do contato com a poesia (ou com a prosa), normalmente nos interessamos pelas obras por causa da temática ou do gênero. Assim como há quem só leia romance policial, há quem só se interesse por poema de temática amorosa. Como este tema predomina através dos séculos nas diferentes literaturas e nos cancioneiros populares, há até quem, mais ingenuamente, identifique poema e letra de música com texto que fale sobre o amor.

Marcus Vinicius Quiroga

sábado, 24 de julho de 2010

ALGUMAS QUESTÕES DE POESIA


COLÓQUIO


Em certo lugar do país
se reúne a Academia do Poeta Infeliz.

Severos juízes da lira alheia,
sabem falar vazio de boca cheia.

Este não vale. A obra não fica.
Faz sonetos, e metrifica.

E esse aqui o que pretende?
Faz poesia, e o leitor entende!

Aquele jamais atingirá o paraíso.
Seu verso contém blasfêmia e o riso.

Mais de três linhas é grave heresia,
pois há de ser breve a tal poesia.

E o poema, casto e complexo,
não deve exibir cenas de nexo.

Em coro a turma toda rosna
contra a mistura de poesia e prosa.

Cachaça e chalaça, onde se viu?
Poesia é matéria de fino esmeril.

Poesia é coisa pura.
Com prosa ela emperra e não dura.

É como pimenta em doce de castanha.
Agride a vista e queima a entranha.

E em meio a gritos de gênio e de bis
cai no sono e do trono o Poeta Infeliz.

Antonio Carlos Secchin



     Vamos usar o texto Colóquio, de Antonio Carlos Secchin, como motivação para levantarmos algumas questões sobre poesia, sugeridas por seus versos. Primeiramente, cabe reconhecer o tom irônico e crítico do poema que expõe pensamentos diversos e contraditórios, ditos com frequência por escritores, professores e críticos, ou seja, “os juízes da lira alheia’’. O texto adquire para quem conhece a obra poética e a prática de professor de oficina literária de Secchin, que é, além de escritor, também professor de literatura, ensaísta e crítico, uma autoironia, que talvez passe despercebida para outros leitores.
     Na 3ª estrofe, o verso “Faz soneto e metrifica” nos remete, de início, para o uso de forma fixa. No caso, o soneto. Esta forma fixa, composta de dois quartetos e de dois tercetos, foi, sem dúvida, a mais usada durante os períodos dos estilos clássico, barroco, romântico, parnasiano e simbolista. Com o Modernismo de 22, as formas fixas foram postas de lado, mas foram mais tarde resgatadas e o soneto, por exemplo, foi revalorizado pelas mãos de Vinicius de Morais e Carlos Drummond de Andrade, para citarmos poucos.
     De qualquer forma, várias gerações do século XX viram com maus olhos a forma fixa e, em particular, o soneto, talvez tido como ícone máximo de uma literatura já gasta e excessivamente formal, segundo padrões de versificação de séculos anteriores. No Brasil, o soneto parnasiano tornou-se, após a crítica modernista, o exemplo de poesia a não ser seguido. Trata-se, no caso, de texto que cuida mais da rigidez métrica, das rimas ditas ricas e da chave de ouro, em detrimento, muitas vezes, de um conteúdo mais profundo.
     Curiosamente ainda vemos, principalmente em cidades do interior, escritores que se dedicam exclusivamente ao soneto, como nos modelos romântico, parnasiano e simbolista. De fato, não são poucos os poetas que, se encontrando distantes da mídia cosmopolita, ainda rejeitam as “inovações’’ modernistas e seu versilibrismo.
     Aqui vale a pena discutir a questão da contemporaneidade na literatura. Se, por um lado, ainda temos poetas parnasianos fora de época; por outro, também temos escritores e críticos que, por valorizarem, cega e radicalmente, o ser contemporâneo da poesia, não admitem, de forma alguma, a feitura de um soneto, como se sua forma fosse o bastante para desqualificá-lo. Lembremos de que a “chave de ouro”, tão criticada, aparece em muitos poemas de versos livres, mas não em todo soneto.
     Parecem-nos úteis os comentários sobre a forma fixa, além do soneto, como a sextina ou o haicai, e até dar um exemplo. Isto não quer dizer que esperemos que um poeta jovem do século XXI vá escrever éclogas ou madrigais.
     Insistindo na questão da contemporaneidade, acreditamos que ela não se restrinja a uma concepção maniqueísta de formas fixas ou livres, mas que diga respeito à linguagem dos poetas. Pensemos aqui na obra de Paulo Henriques Britto, cuja primeira publicação data de 1989, e veremos que este poeta usa com abundância formas fixas, sem deixar de ser contemporâneo. Como exemplo, temos textos em Trovar claro que são feitos com o uso do linguajar da marginalidade, encaixando a gíria e o universo do banditismo em uma forma fixa.
    Se falamos em forma fixa, somos obrigados a falar em métrica. Na nossa literatura, também foi na década de 20 que a métrica cedeu lugar ao verso livre. E, igualmente como o soneto, ela passou a ser vista como opção poética ultrapassada, o que nos parece um equívoco. Mário de Andrade, em seu Prefácio interessantíssimo, do livro Paulicéia desvairada, faz um soneto, de deboche, para mostrar que, se arte era saber metrificar, ele também sabia. Frases de espírito à parte, elaborar um poema metrificado não é garantia de sua qualidade, tampouco fazer um poema sem métrica. Logo um poema é bem mais que a habilidade e a prática de se fazer um poema com dez sílabas em todos os versos e com as devidas sílabas tônicas, como também é bem mais do que escrever sem métrica.
     Em um poema metrificado, é mais visível (ou melhor, audível) o seu ritmo, mas isto não quer dizer que o poema de verso livre não tenha ritmo. Esta é também uma falha de percepção de quem faz versos livres só por não saber metrificá-los, e não por escolha. Manuel Bandeira, que iniciou usando a métrica e a forma fixa, tornou-se um mestre do verso livre, talvez pelo fato de antes ter usado bastante a métrica. Dizer que um texto é contemporâneo por ter versos livres é o mesmo dizer que sua contemporaneidade se encontra no tema de i-Pods, por exemplo. Afinal, o verso livre em nossa literatura já é um senhor de mais de oitenta anos.
     Mais do que substituir o verso metrificado pelo livre, cremos que a contribuição modernista foi a de nos libertar da obrigatoriedade da métrica e a de relativizar a obediência plena às regras de versificação. Vejamos como João Cabral, um poeta de obra bastante “medida”, usa a métrica sem a rigidez integral, variando o número de sílabas, como ele mesmo diz no poema A Augusto de Campos, do livro Agrestes. Como exercício, para que o aluno perceba melhor o texto metrificado, sugerimos a contagem de silabas de alguns versos, diferençando a contagem gramatical da poética, que para na última sílaba tônica e que se vale de recursos como a sinérese, a elisão, a crase etc Sabemos que estes nomes não são lá muito simpáticos, mas a explicação fará com que percebam que a união de vogais é fácil de ser compreendida, até porque é um fenômeno normal da língua falada.
     Recomendamos aos que querem se dedicar à poesia que, independente da idade, aprendam e pratiquem a metrificação para depois, abandoná-la, se quiserem. Ou, o que é comum com muitos poetas, como é o caso do próprio Antonio Carlos Secchin, autor de Colóquio, alternar versos livres com metrificados, segundo o desejo e a intenção literária.

Marcus Vinicius Quiroga

sexta-feira, 23 de julho de 2010

CLÁUDIO AGUIAR

















SONHO SOLAR


A Miguel Elías Sánchez Sánchez


Eu não conheço o sol,
clarão que humilha e me faz manso.
Só o conheço na sombra
que também mata e inocenta.

No lago interior, alma afogada,
afundei a matéria abismal do choro,
facho imenso entre o dia e a noite.
Oh, escuridão eterna,
quando serei raio
partindo do útero da terra?

Eu não conheço a luz temporal
que anda por sendeiros,
buscando as pisadas das estrelas,
gerando um som que me emudece.

Ainda que o meu tamanho se agigante,
não vejo nada além do infinito.
Talvez me ensine mais o sonho
que me alimenta e logo me destrói:
rotor preciso da imensidão,
refrão nefasto da pequenez humana.

REYNALDO VALINHO ALVAREZ



















A PAZ QUASE IMPOSSÍVEL

Tudo é parede em torno, tudo é nada
e em vão martelo o crânio contra o muro,
os ladrilhos manchados da prisão,
o cárcere maldito, a solitária,
a cela-surda em que não sento ou deito,
mastigando os insetos do meu dia,
a palavra travada, a fala morta
no tubo amordaçado da garganta,
eu, Sísifo rolando a pedra bruta,
eu, Prometeu acorrentado e exposto
ao abutre infernal, eu, navegante
sem bússola ou sextante, remo ou vela,
eu, estrangeiro indesejado, eu, morto,
insistindo no jogo de estar vivo.

DOMÍCIO PROENÇA















O PÁTIO DOS ENFORCADOS



No pátio
jaz
o patíbulo
e a corda.

No ar,
esponjas de fel.

Nas esquinas do tempo
a cal e as cruzes
de sangue
o sal
a mão
do carrasco.

Há ruínas de palácios
e sombras de cicatrizes
e sob o manto de asfalto
fermentam
velhas raízes
adubadas de silêncio
e da palavra
enforcada:

nos labirintos do tempo
treme a flor anunciada
e floresce
no patíbulo
a corda
desabrochada.

Há ruas
loucas de fome
e uma sede de séculos
nessa praça
envergonhada.

SONIA SALES





















SOU APENAS O SILÊNCIO


Sou apenas o silêncio
um momento de enlevo, de almas
que ainda não existem.
Um gesto, um olhar
a arritmia das ondas batendo na praia.
O fluxo da correnteza
arrastando toalhas e cangas, na melancolia
dos sentimentos.
Meus sonhos, na soca do redemoinho
sem volta, pastiche de mim
imitando a realidade.
Minha ansiedade é o tempo, seu brilho
mortal. Do meu corpo
a carência da minha mente,
o relógio de pulso.
Preciso nadar com as marés
esvaziar a ampulheta,
realizar ao que vim
ter coragem, chegar onde vou.

EDIR MEIRELES





















Poema Troncho


Um regurgitar botânico
me induz a uma dedução
apressada

apresada em meu íntimo
como o verniz na matéria
envelhecida

o envilecimento turge o espírito
e decodifica a metafísica
a meta fica desmistificada

e a alma se petrifica
coisificada

a coisa ficada em natura
se fixa e perde a elasticidade
do obtuso pensamento

o passamento é fato do passado
no passadiço do fuso horário
do universo sem hora

senhora dos meus sonhos
a musa rouba-me
o inconsciente

estou ciente de minhas deficiências
e fraquezas de amante
o diamante é mineral bruto
que se faz preciosidade

após ser lapidado
do lápis dado não se muda
o grafite e nem mesmo o traço
por isso o poema troncho - faço.

CLÁUDIO MURILO LEAL


POETA, CANTA

O poema é ócio?
Perdida e puma
Em mar no cio?
Ou será alguma

Flor inodora,
Sonho, fastio?
Ou será agora
A fome e o frio?

Poeta, canta
O estrito mundo
Que te espanta,
Mesmo imundo.

O poema hoje
É guerra e grito.
Prepara na forja
Um canto infinito.



MARCUS VINICIUS QUIROGA











TALVEZ POÉTICA



um poema se faz do que não se sabe,
do que existe e é ainda obscuro;
espécie de sambaqui, reúne as sobras
com feição de incorreto ou de sujo;
seguidamente desce ao fundo
e recolhe todo tipo de matéria submersa,
para depois tirar das palavras brutas
o texto que tantas vezes reescreve.

não se vê de antemão a última forma,
que mesmo ela perdura efêmera;
estas coisas de poesia vão no fluxo,
só vêm à tona na folha de quando em vez;
um dia desaparecem nos olhos
e só servem de papel para reciclagem,
certo que é tanto o custo de se fazer
e o existir tão pouco, tiro na ave.

WALDIR DO VAL











À MEMÓRIA DE GARCIA LORCA


O crime foi em Granada!
Mataram Garcia Lorca!

Vermelhas, papoulas vivas,
de sangue, por sobre o corpo
do poeta. Garcia Lorca,
não morto, apenas repousa
na terra que tanto amou.
Não tem cruzes, não tem lousa,
tem é papoulas de sangue
plantadas sobre o seu corpo!

O crime foi em Granada
que ouviu a voz do poeta
(voz de profeta, melhor).
Na praça, onde a luz punha
fantasmas de luz e sombra,
Garcia Lorca morreu.
Morreu apenas a carne,
que a sua voz ainda vive.

O crime foi em Granada!
Mataram Garcia Lorca!

O corpo foi sepultado
num trigal. Mas, sobre a terra
que cobre o corpo do poeta,
os lavradores plantaram
um canteiro de papoulas.
Papoulas vivas, de sangue...
Lembrança do crime horrendo
de fuzilar um poeta!

O crime foi em Grnada!
Mataram Garcia Lorca!

Porém, a sua poesia
ninguém pode assassinar!
Poetas e camponeses
do mundo inteiro, plantemos
nossas papoulas vermelhas
sobre o túmulo do poeta...
que elas serão, contra o crime,
nosso protesto de sangue.


O crime foi em Granada!
Mataram Garcia Lorca!

GILBERTO MENDONÇA TELES
























45

A Domingos Carvalho da Silva


Sou da geração
de quarenta e cinco
ou tenho na mão
a porta sem trinco?

(Nem sei quantas são
as telhas de zinco
que cobrem meu chão
de quarenta e cinco.)

Semeei meu grão?
fui ao fim do afinco?
pesquei a paixão
de quarenta e cinco?

Tudo é sim e não
em quarenta e cinco.
E a melhor lição
forma sempre um vinco

de interrogação
no tempo, onde brinco
procurando um vão
entre o 4 e o 5.

STELLA LEONARDOS




















ESPELHOS



.. "Sigamos, primeiro, as próprias indicações
de Bretas: o Aleijadinho, diz-nos ele, sofreu
complicações d'humor gallico com escorbuto".
                                               Germain Bazin



É mancha de tinta
ou pele manchada?
É poeira em camada
ou pele que escama?

É pingo de roxo
ou sangue pisado?
É raiva de um rosto
ou um rictus de máscara?

É imagem disforme
ou espelho infamante?
É mais que grotesco:
é face de drama.

É o trágico doendo:
um monstro se olhando.
Abaixo o que espelha!
Cristal, água, lâmina.

PROGRAMAÇÃO CULTURAL DO 2º SEMESTRE

Academia Carioca de Letras


PROGRAMAÇÃO CULTURAL
Ciclo de conferências de julho a setembro de 2010
Coordenação: Stella Leonardos

JULHO
Dia 26 (2ª feira) – “A traição de Nabuco”
Conferencista: JOSÉ ARTHUR RIOS


AGOSTO

Dia 02 (2ª feira) – “O estilo literário de Joaquim Nabuco”
Conferencista: CLÁUDIO MURILO LEAL

Dia 09 (2ª feira) – “Entre Faulkner e Lins do Rego”
Conferencista: MELISSA MELLO E SOUZA

Dia 16 (2ª feira) – “Notícias do caso Dreyfus”
Conferencista: BRÁULIO MACIEL

Dia 23 (2ª feira) – “O mito do espelho: da mitologia grega a Guimarães Rosa”
Conferencista: MÁRIO MOREYRA

Dia 26 (excepcionalmente 5ª feira) – Homenagem aos escritores de Goiás
Conferencista: MIGUEL JORGE

Dia 30 (2ª feira) – “O narciso de cristal na poesia de Cecília”
Conferencista: MIRIAM DE CARVALHO

SETEMBRO
Dia 13 (2ª feira) – “A filosofia de Boécio”
Conferencista: OMAR DA ROSA SANTOS

Dia 20 (2ª feira) – “A poética de Ferreira Gullar: homenagem aos 80 anos”
Conferencista: MARCUS VINICIUS QUIROGA

Dia 27 (2ª feira) – “O monóculo & o calidoscópio – Gilberto Freyre, escritor”
Conferencista: CLÁUDIO AGUIAR


ENTRADA FRANCA
Horário: às 17:30h
Local: Salão Nobre da Academia Carioca de Letras
Rua Teixeira de Freitas, 5 – 3o andar – Lapa, Rio de Janeiro, RJ
Informações: 2224-3139